RELATOS DE INFÂNCIAS, VOZES DO SILÊNCIO
RELATOS DE INFNCIAS, VOZES DO SILNCIO
RELATOS DE INFNCIAS, VOZES DO SILNCIO
Kritas Lacerda de Souza[1]
Rosimar N. de Oliveira Saraiva[2]
Introduo
Neste artigo pretendemos descortinar espaos e revelar sujeitos; trazer percepes e nos referirmos a sentimentos. Apresentamos relatos de algumas crianas com quem estabelecemos contato nos anos de 2008 e 2009, em uma instituio de educao infantil, no serto das Minas Gerais, na cidade de Montes Claros. Para alcanar tal fim, descrevemos diversas experincias de sujeitos que anunciaram questes de ordens sociais enfrentadas pelos mesmos. Apresentamos relatos de experincias com crianas, cujas vozes, to silenciadas, vm descortinando universos que a tanto vimos desconsiderados.
Portanto, pretendemos com esse estudo, revelar das crianas suas vozes, balbucios, sorrisos e expresses pulsantes e conectados com a vida. Vozes silenciadas, pois que no as ouvimos. Pensamentos que se cruzam com os nossos, que a todo o momento pensam, refletem, entendem, criam e recriam intensivamente.
Por vezes, nos fica a impresso que perdemos a fora da vida deixando-nos assujeitar. Nossos ouvidos no percebem mais as notas musicais, os tons da infncia. Parece que fomos agenciados. Ouvimos as "msicas" das crianas, mas no as escutamos. E elas falam, no h discursos, no h palavras, existe a fora da vida, que por si s ecoa em todos os sentidos. Pois so palavras que no esto em nossa gramtica pragmtica, mas palavras que anunciam vida na/da infncia. Para ouvi-las, senti-las, preciso nos silenciarmos, nos aquietarmos e buscarmos a nossa prpria melodia, o nosso tom, j to perdido, pois desde h muito parece que perdemos a capacidade de nos ouvir e de nos afinar nos tons prprios.
A infncia tem se revelado cada vez mais um dos temas de maior importncia na atualidade, com aspectos multifacetados, e no mnimo intrigantes na medida em que polticos, estudiosos, pesquisadores e juristas se debruam sob o mesmo, ora a partir de debates tericos, ora por fatos chocantes envolvendo-a em situaes de violncia e negligncia. Nesse sentido, a infncia ora percebida como o material humano do futuro, carecendo de proteo e cuidados educativos, ento ela um vir a ser; ora ela concebida na perspectiva da prpria palavra "infncia" que est associada a uma ausncia, a uma falta, que inscrita no marco de uma incapacidade( Kohan,2008). Nestas duas percepes ela ainda no , sendo algo ainda inconcluso, inacabado, em desenvolvimento, um intervalo suspenso no ar, at chegar ao pronto e concludo: um adulto socializado com direitos de ir e vir nos espaos sociais delimitados para tal.
Para ento trabalharmos no sentido da escuta e percepo das vozes das crianas, concebemos a infncia enquanto categoria social, na perspectiva de crianas como atores sociais e sujeitos culturais que constroem e interferem nos espaos em que vivem, pensam e produzem interpretaes da sociedade, de si mesmos e dos outros (Sarmento, 2000; James e Proud,1990). Portanto a infncia ser interpretada, aqui, como meio social para a criana (Mauss, 1996). Nos remeteremos tambm ao conceito de que a infncia como uma faculdade chamada criao, transformao, revoluo, que impede a repetio do mesmo, como fora que traz um mundo novo, que nos faz nascer de novo, uma faculdade que pode nos atravessar independente do tempo, e de tudo que nos aprisiona e caracteriza (Kohan, 2008). Para isso apoiaremos-nos em autores como Manuel Sarmento (2004), Walter Kohan (2008) Marcel Mauss(1996), Anete Abramowicz (2009) Manuel Pinto (1997) Jucirema Quinteiro ( 2002), Jos Martins (1993) e James e Proud(1990) para realizarmos esta anlise terica.
Reflexos de uma experincia: descortinando infncias...
Para os propsitos desse artigo, apresentamos um conjunto de observaes realizadas em um trabalho dirio e contnuo de oito horas por dia, em uma creche de tempo integral. Um dos principais objetivos destes registros nos posicionarmos de forma crtica quanto a uma concepo de criana passiva frente os processos de socializao, inserida em um tempo desenvolvimentalista, recortado por etapas j pr-determinadas de crescimento, vivido por um sujeito sem "voz". Nessa inteno trazemos aqui a contribuio de Pinto que nos chama a ateno para os seguintes aspectos:
O primeiro o de que as crianas tm algum grau de conscincia dos seus sentimentos, idias, desejos e expectativas, que so capazes de express-los e que efectivamente os expressam, desde que haja quem os queira escutar e ter em conta. O segundo o de que h realidades sociais que s a partir do ponto de vista das crianas e dos seus universos especficos podem ser descobertas, apreendidas e analisadas ( 2004:65).
Nesta mesma perspectiva, Sarmento (2004, p.25) relata que "o estudo das crianas a partir de si mesmas permite descortinar outra realidade social, que aquela que emerge das interpretaes infantis dos respectivos mundos de vida". Nesse sentido, a infncia pode nos revelar aspectos sobre as crianas no percebidos e muitas vezes negligenciados pelos adultos. A partir de ento, concordamos com Pinto (2004) ao relatar que a criana no responde passivamente aos processos de socializao que se direcionam a ela quer seja na famlia, quer seja na escola ou em instituies semelhantes, mas ao contrrio, elas pensam, sentem, se afligem, estressam, rechaam, boicotam ou aceitam aquilo que lhe oferecido. Portanto as crianas se revelam ativas no meio social em que vivem, conforme tambm a afirmativa de Prout e James, que entendem que, "as crianas constroem os ambientes que a rodeiam e a sociedade mais vasta em que vivem" (apud PINTO, 2004, p.65).
A partir desse caminho terico pontuamos que as vozes da infncia so ditas durante todo o tempo, em qualquer espao em que as crianas interagem. No entanto, nos parecem que estas vozes so lanadas ao vento, no deserto da indiferena do universo adulto, que no querem ouvi-las em funo talvez de uma certa acomodao. Por sua vez, ao ouvi-las, ns, adultos, teremos que, de alguma forma, nos direcionar aos movimentos de reflexo e de mudanas. Talvez, porque no tenhamos tempo nem para nos escutar num mundo que nos aliena ou, ainda, porque nossa sensibilidade nos insuficiente o bastante, para nos debruarmos sobre as questes do mundo da infncia uma vez que a orientao do nosso olhar ainda carrega percepes adultocntricas.
Desta forma, concordamos inteiramente com a reflexo de Roger Bastide, ao prefaciar o trabalho pioneiro de Florestan Fernandes (1947, p.154), "As trocinhas do Bom Retiro" quando observa que "ns, os adultos, vivemos tambm dentro de nossas prprias fronteiras [...]", fronteiras estas que nos impedem de reconhecer e interagir com o mundo da infncia; no obstante o fato de estarmos com as crianas, trabalharmos com elas, esbarrarmos nelas.
fato que ns educadores ainda no nos desvencilhamos do controle institucional que existe por trs das instituies educacionais. Ressaltamos a contribuio de Abramowicz et ali (2009) ao discutirem que,
Os professores da escola para a criana pequena, que constroem e propiciam os exerccios de infncia, trabalham na perspectiva de um determinado cuidar e educar orientado por hbitos de cuidado e educao que se constituem em modos e modelos de agir hegemnicos (p.181).
Conseqentemente, numa ordem aparentemente natural, os educadores acabam internalizando imposies e regras enquanto "verdades'', como se fossem produo da prpria subjetividade. Dessa forma o educador "preso" no interior dessa lgica de cuidar e educar a criana pequena acaba no percebendo os movimentos subjetivos da prpria criana, ou se os percebe no o considera importante ou os considera enquanto "atpico"comportamento de criana. Por isso no nos atentarmos para as crianas, que nos olham, nos indagam, nos falam, que sorriem e que choram, e que, sobretudo vivem com intensidade as suas vidas. Assim, os horrios, os currculos, os programas, os temas, os projetos e toda esta parafernlia pedaggica que nos "aliena", tambm busca aprisionar as infncias,determinando o que ensinar e em que devemos nos ater.
Propomos ento aqui que adotemos a condio "mgica" da criana que escapole dos processos que impe o assujeitamento e a padronizao de seus desejos e de suas peculiaridades. Visto, pois, que elas "insistem", e em meio a uma "rodinha" de trabalho ou conversa, elas falam. Falam de si mesmas, do que sentem, do que lhes preocupam, do que acreditam... Necessitamos, todavia de "ouvidos" para ouvi-las, mas no somente isso...
Em 2008, tivemos contato com a aluna Lara[3], que tinha cinco anos de idade. Algumas vezes a observvamos chateada. Certo dia, indagamos av de Lara sobre as condies de vida de sua neta. Segundo a mesma, a me de Lara estava vivendo com um homem que no era o pai biolgico da menina e por isso ela vivia com a av. No entanto, a av apontou que s vezes em que a me ficava com Lara, esta presenciava em sua casa os objetos furtados pela prpria me e o seu padrasto. Falou tambm que a menina j havia presenciado a me guardando o revolver, que sabia tambm que ela fumava "baseado" e que gostava de roupas muito extravagantes. Lara tambm presenciava com freqncia a chegada da polcia e da correria que isto causava na localidade em que a me dela mora, um bairro perifrico de Montes Claros, com alto grau de criminalidade e violncia.
Determinada ocasio Lara relatou-nos:
Sabia, que l na favela todo dia a polcia prende um. O Toni, Andr...
Porque eles faz coisa errada, eles tava com revlver. Eles entraram na casa de Andr e prendeu ele.
A minha me no foi ver a gente mais, ela t usando droga, e tava com revlver mais Patric. [Patric o seu tio materno].
Voinha disse que no pra ela entrar mais l em casa, pra ver ns, s quando ela melhorar. Minha me disse que vai matar Voinha se ela cortar meu cabelo, por causa dos piolhos.
Esses dilogos sempre se davam no horrio de descanso em que as crianas assistiam filmes, brincavam ou iam deitar. Lara aproveitava este tempo para falar sobre sua vida. Ela sempre pedia para fazer um desenho. Talvez porque ns queiramos sempre que as crianas produzam alguma coisa, ou seja, v-las envolvidas em atividades sistematicamente pedaggicas, "aprendendo" sempre algo. Lara compreendeu essa "necessidade" de muitos educadores. Ento Lara falou-nos: "Eu posso ficar aqui e fazer um desenho?". Mas na verdade, o que ela queria era dialogar e ser ouvida e percebemos isso.
A experincia de Lara bastante rica, sobretudo para pensar nas infncias vivenciadas pelas nossas crianas, infncias marcadas pelas difceis conjunturas sociais de nossa sociedade, trazemos a contribuio de Sarmento, quando fala sobre a conveno que consagrou de forma suficientemente clara e extensa um conjunto de direitos fundamentais, prprio e inalienvel que,
no apenas no foi suficiente para garantir uma melhoria substancial das condies de vida das crianas, como, pelo contrrio, no cessam de se intensificar factores que fazem das crianas o grupo etrio onde h mais marcados indicadores de pobreza, como se tm agravado alguns sinais das crianas como o grupo etrio mais sujeito a situaes especficas de opresso e afectao das condies de vida (2004, p.12).
Vivemos em um tempo onde a infncia est calcada em vrios aportes legais que se sucederam desde a conveno de 1989, at chegarmos constituio dos Conselhos da Criana e do Adolescente e a publicao do Estatuto da Criana do Adolescente/ECA, em 1990, que se trata de um conjunto de normas do ordenamento jurdico brasileiro que tem como objetivo a proteo integral da criana e do adolescente. No entanto, a criana, sujeito de direitos, continua merc dos processos de desigualdades sociais e econmicas nas vrias infncias em que vivem no Brasil.
Existe uma discrepncia entre o que vigente no plano legislativo e o que de fato acontece na realidade social. Isto se deve, conforme aponta Sarmento e Pinto (2004) ao fato de que "a realidade social no se transforma por efeito simples da publicao de normas jurdicas; as desigualdades e discriminao contra (e entre) as crianas assentam na estrutura social" (p.18). Em meio a essa lentido, com altos discursos de retrica no que se refere ao oferecimento de infncias melhores nos indagamos: Como garantir s crianas espaos e meios culturais, sociais e econmicos para viverem a sua infncia? Como garantir a prevalncia dos direitos conquistados no mbito legal sem atentar para as realidades sociais que as rodeiam?
Sem desqualificarmos as conquistas ora mencionadas, entendemos que pensar a questo no mbito apenas legal significa camuflar a situao se iludindo quanto realidade, ou seja, significa andarmos em crculos. bastante contraditrio valorizar e reconhecer as especificidades das infncias e depois abandon-las aos ventos das conjunturas sociais marcadas pelas desigualdades sociais e econmicas do nosso pas.
Trazendo o caso de Lara como exemplo dessa realidade social, sua me tinha 17 anos. Isto quer dizer que ela se tornou uma jovem-me aos 12 anos de idade, numa realidade social perversa, que discrimina a criana-me, que mal ver e mal-diz quem pouco teve oportunidade de viver uma vida melhor. Diferente de vrias outras mes, a me de Lara no quis ser uma empregada domstica. Na verdade, estava adolescendo, conforme aponta o ECA, ainda no tinha entrado para a vida adulta. Mas no foi assim. J possua uma filha, tendo que sustent-la e sustentar-se, envolvendo-se num mundo perigoso - do trfico.
Eis a trajetria social percorrida por muitos jovens e at crianas que moram em seu bairro. Nos vemos diante de questes que no se referem infncia apenas, mas a uma estrutura social em que pessoas so privadas de emprego, de educao e ficam expostas a violncia, ao trfico de drogas, a gravidez precoce, enfim a uma srie de dificuldades relacionadas pobreza e a misria social . Enfim, um contexto em que as oportunidades de se viver, crescer e ter acesso ao mnimo ainda "privilgio" de poucos. Ento, as crianas se vem envolvidas com questes to complexas quanto os prprios adultos.
Martins (apud QUINTEIRO, 2002) nos revela em seu estudo, desenvolvido a partir de entrevistas, que as crianas, foram muito tmidas, e que nas suas falas, as mesmas revelavam um discurso tristemente adulto, privado da inocncia infantil, que ele ingenuamente imaginava encontrar. Diante dessa afirmao, percebida em seu trabalho de pesquisa, realizado na dcada de 1990, pode-se constatar, a exemplo dos relatos de Lara, que as falas das nossas crianas, ao menos daquelas que pudemos observar de perto, carregam de fato preocupaes e dilemas tanto quanto os adultos. Elas revelam as inseguranas das separaes conjugais, das prises de um dos pais, da violncia domstica, da falta de dinheiro. Lara em um dos dias em que estivemos com ela, nos fez um pedido. Queria que a ajudssemos a fazer um carto de aniversrio para o seu pai. Ele estava foragido em So Paulo e veio "rapidinho", "escondidinho", como disse ela, para Montes Claros. Logo, Lara fala do pai traficante, do trfico de drogas, da cadeia, da correria de que se esconder da polcia e do terror de morar em uma regio em que se vive o fogo cruzado entre policiais e traficantes.
A situao agrava-se mais ainda para aquelas crianas que se encontram sob a tutela do poder pblico que so retiradas das suas famlias em funo de maus tratos ou situaes de riscos. Decorre da a tenso de voltarem ou no para as suas famlias, de serem ou no adotados no caso daqueles em que os pais foram destitudos do ptrio poder. Mas, surpreendentemente, estas crianas sorriem e se divertem nos parquinhos da vida, ainda assim buscam viver uma infncia de brincadeiras e jogos, ainda que estes jogos sejam para vivenciar os dramas vividos, e quem sabe, resolv-los simbolicamente.
Outro exemplo o caso de dois irmos de nome Joo e Marcos. Eles foram encaminhados a um CEMEI atravs de um Abrigo Municipal, uma instituio pblica que acolhe crianas em situao de risco. Nessas, elas ficavam at serem encaminhadas aos processos legais com relao a cada caso. Algumas podiam receber visitas dos pais outras no, dependendo da situao dos mesmos e do tipo de infrao cometida para com os filhos ou tutelados; poderiam ficar dias, ou semanas ou at mesmo meses e anos; poderiam voltar casa de seus pais ou de algum parente, outras seriam disponibilizadas para a adoo. Joo, o mais novo, de quatro anos de idade, relatou-me eufrico:
Lol e Marta j foram para casa dela, eu tambm t arrumando a minha igual Lol. [Lol uma criana de trs anos de idade que acabava de ser adotada].
Continua Joo, agora com seu irmo Marcos:
- "Oh irmo, achei uma casa pra gente morar".
E um coleguinha, o Pedro (04 anos) responde:
- "Meu pai falou que vocs pode ir para minha casa, eu deixo ele ser o seu pai".
Outro coleguinha entra na conversa. Agora o Lucas (05 anos):
- "Pode ir para minha casa, minha me deixa tambm".
Como podemos observar, embora consciente de que podemos incorrer no risco de interpretar as falas das crianas ou de deixar a nossa subjetividade interferir no que estamos relatando e, apesar do nosso cuidado para suspender nossa projeo oriunda do mundo adulto, perceptvel o quanto Joo estava preocupado com a sua situao. Sem voltar para casa, ele permaneceria no abrigo, ainda confiando que isso fosse temporrio, mas no sabendo, ao certo, por quanto tempo permaneceria. Isso trazia-lhe preocupaes, que aumentava quando ele via sair do abrigo uma criana enquanto ele permanecia ali, o que o fazia buscar solues desse problema por conta prpria. Como relatado nas falas, ele recorria aos amigos que tinham famlia.
importante observar como as outras crianas envolvidas no relato acima se predispunham a ajud-lo. Pedro solidrio, pois ele se disponibiliza a dividir a sua famlia com os dois irmos. Ainda assim, to marcados pelas dificuldades da infncia vivida, as crianas conseguem fazer sobreviver a espontaneidade, o idealismo, a solidariedade de forma to simples e ao mesmo tempo profunda.
Neste perodo de observaes, em que algumas crianas do abrigo estavam sendo adotadas ou retornando para os lares, notamos inquietude do Joo. Marcos, seu irmo mais velho, no se revelava como seu irmo, pois ele quase no expressava verbalmente sobre essas questes. Parece que ele aprendera a ficar calado, a no demonstrar tanto as suas inseguranas. Observamos como ele se sentia responsvel pelo irmo menor. Atravs de um dilogo entre Joo e um eletricista que fazia pequenos reparos na escola, identificamos sua preocupao. Joo perguntara ao moo:
-"Voc tem filhos? Voc deixou eles sozinho? Voc gosta deles? L tem comida? A sua casa longe?
Perante as respostas curtas do eletricista, Joo insistia nas perguntas, at o momento em que foi indagado sobre seu local de residncia, quando ento respondeu:
- "Faz um tempo que no sei mais nada, de dia aqui, de noite l com o tio Pedro" [Funcionrio do abrigo].
Neste mesmo dia, quando do retorno para o abrigo, ao ser chamado pelo nome, Joo imaginando que era algum familiar que o buscava gritou:
- "Irmo... Irmo... Irmo, nossa me chegou...
Ao perceber o seu engano se recusou a entrar na conduo que o levaria de volta para o abrigo municipal. Como poderia Joo se concentrar nas atividades propostas pelas educadoras se ele estava to preocupado com a sua vida? Onde iria morar? Com quem iria ficar? Ao afirmar no saber de mais nada, pode nos revelar uma forte angstia perante a sua questo. Mas ele no desistia. Os relatos apresentados acima revelam o quanto estas crianas vivenciaram e estavam envolvidas com questes cruciais tanto quanto os adultos. Para elas, porm, se torna ainda mais difcil lidar com os tipos de problemas enfrentados. Em primeiro lugar, porque geralmente os adultos acreditam que elas no ressentem e nem se preocupam com elas mesmas, subordinando-as a viverem em um mundo insignificante. Em segundo lugar, porque as crianas so vistas como seres "infantes", isto , literalmente sem voz, sem fala, idia esta oriunda da prpria origem da palavra infncia (infans). Esse termo est formado por um prefixo privativo "in", da o seu sentido "que no fala", "incapaz de falar" (KOHAN, 2008, p.40).
(In)Concluses
Ento, submetidas aos duros processos de socializao, conforme revela a teoria durkheimiana, difcil para Joo e Lara se acostumarem a uma vida que eles no desejaram para eles mesmos, como tambm difcil serem vistos como in-fans. Numa sociedade adultocntrica, suas necessidades e seus interesses so silenciados. No entanto, eles resistem, uma resistncia quase revolucionria. Num movimento de dar novo sentido vida, buscando impedir a repetio, a monocromia, que a vida lhes impe. A respeito desta faculdade revelada pela infncia, desta fora que nos atravessa, independente do tempo e da idade, do sexo, esclarece Kohan (2008, p.47):
Ento, sempre nos nasce uma criana, a vida toda. Porque a infncia o acontecimento que impede a repetio do mesmo mundo, pelo menos a sua possibilidade, um novo mundo em estado de latncia. Somos nascidos a cada vez que percebemos que o mundo pode nascer novamente e ser outro, completamente distinto daquele que est sendo. O nome de uma faculdade chama criao, transformao, revoluo, isso a infncia.
Essa faculdade da infncia, como fora que irrompe, com propulso, contra o modelo hegemnico, contra a nota que a vida impe, pode nos atravessar, tal qual atravessa o Joo e Lara, que disparam em correria pelo ptio em direo ao movimento de vida e buscam criar caminhos, possibilidades. necessrio permitir o atravessamento da infncia em nosso movimento da vida e estranharmos o que nos familiar e costumeiro, o que j est dado como pronto, previsvel na linha cronolgica do tempo e dos acontecimentos, para que atravessados pela fora da infncia, reconheamos a alteridade da criana. Ento, de ouvidos afinados, atentos s subjetividades, poderemos escutar a voz dos Infans, recolh-la e se importar com o que dito a fim de (re)conhecermos de forma mais fecunda o universo vivenciado por eles e sobretudo propiciar o meio social que favorea a vivncia de experincias de infncias dignas s crianas.
Referncias
ABRAMOWIC, Anete; LEVCOVITZ, Diana; RODRIGUES, Tatiane Cosentino. Infncias em Educao Infantil. Pro-Posies, Campinas, v. 20, n. 3 (60), p. 179-197, set./dez. 2009.
CERISARA, Ana Beatriz; SARMENTO; Manuel Jacinto. Crianas e Midos: Perspectivas Sociopedaggicas da Infncia e Educao. Edies, ASA, Lisboa, 2004.
Conveno dos Direitos da Criana. Assemblia Geral das Naes Unidas, em 20 de Novembro de 1989.
FERNANDES, Florestan. Folclore e Mudana Social na Cidade de So Paulo. 2 ed. Petrpolis: Vozes, 1979.
JAMES, Allison; PROUT, A., Eds. Constructing and Reconstructing Childhood: Contemporary Issues in the Sociological Study of Childhood, London-New York: The Faimer Press, 1990.
KOHAN, Walter Omar. "Infncia e Filosofia". In: SARMENTO, Manuel; GOUVEA, Maria Cristina Soares de. Estudos da Infncia: educao e prticas sociais. Petrpolis, RJ: Vozes, 2008.
MAUSS,M. Trois observations sur la sociologie de enfance. Gradhiva, 20, 1996.
SARMENTO,Manuel Jacinto. Imaginrio e culturas da infncia. 2003. Disponvel em:. Acesso em: 30 maio.2004.
QUINTEIRO, Jucirema. Infncia e Educao no Brasil: um campo de estudo em Construo. In: FARIA, Ana Lcia Goulart de; DEMARTINI, Zeila de Brito Fabri; PRADO, Patrcia Dias (orgs.). Por uma cultura da infncia: metodologias de pesquisas com crianas. Campinas: So Paulo, Autores Associados, 200
[1] Especialista em Psicopedagogia pela Universidade Estadual de Montes Claros/UNIMONTES.
[2] Especialista em Pedagogia Empresarial (UNIMONTES) e Educao Especial e Infantil com nfase em Alfabetizao pela Universidade Castelo Branco RJ.
[3] Todos os nomes citados neste artigo so fictcios, considerando a finalidade de preservar a identidade das crianas observadas.
RELATOS DE INFNCIAS, VOZES DO SILNCIO
Por:
Rosimar Ndila O. SaraivaPerfil do Autor
1) Rosimar Ndila de Oliveira Saraiva -Especialista em Pedagogia Empresarial (UNIMONTES) e Educao Especial e Infantil com nfase em Alfabetizao pela Universidade Castelo Branco RJ.
2)Kritas Lacerda de Souza -Especialista em Psicopedagogia pela Universidade Estadual de Montes Claros/UNIMONTES.
(Artigonal SC #3303598)
Fonte do Artigo -
http://www.artigonal.com/educacao-infantil-artigos/relatos-de-infancias-vozes-do-silencio-3303598.html
Effective Tonsil Stones Remedy Options Cheap Monthly Contracts Cost-effective Investments This is the Quran that Pastor Terry Jones and others want to burn (2) Importance of W3 Standards Go For The Right Type Of Bed Frames And Accessories Operação Mercari: quando o superfaturamento da publicidade do Banrisul de economia mista proporciona uma incômoda visão sistêmica Como morar bem em minha própria casa? Buy Nexium, Valtrex, Cymbalta, Lexapro, Seroquel Follow Some Guidelines For Getting Perfect Engagement Rings The week ahead (20th Sept- 24th Sep) Classic Concepts Dining Set For A Casual Dining Experience How Is Whiplash Compensation Calculated? Mechanical Seal With Embedded Lubrication